quinta-feira, 17 de março de 2016

"CASA SEM LIVROS: CORPO SEM ALMA"


obs: Imagem extraída do site:
www.culturamix.com


"CASA SEM LIVROS: CORPO SEM ALMA"


O título não é meu, mas de Cícero, orador e estadista latino que viveu antes de Cristo. Livros e alma - bela e delicada comparação que revela o cuidado extremo que se deve ter com ambos.

É compreensível que se manuseiem obras raras com luvas, para que não se manchem ou desmanchem. Isso se aplica tanto a documentos poeirentos quanto a objetos cultuados por colecionadores. Já vi beatlemaníacos procederem assim com álbuns de fotos de seus ídolos ....

A prova do ponto a que chegava o zelo pelo livro reflete-se em antiga ameaça (um tanto cômica, é verdade) fixada na biblioteca do Mosteiro de São Pedro, em Barcelona: "Para aquele que furta um livro ou pede emprestado e não o devolve a seu dono, que se transforme o livro em serpente nas mãos e o ataque".  E segue-se longa lista de pragas.

Quem já emprestou um livro e não o teve devolvido, secretamente, pode até achar boa a ideia. Mas o fato é que os livros foram perdendo o status de intocáveis e se tornaram íntimos, no mesmo ritmo que os leitores se achegaram a eles.

Uma das delícias de se comprar livros em sebos é descobrir, escondidas entre parágrafos, "conversas" do ex-dono com o texto. É como olhar pela fechadura, desvelando almas, em geral desconhecidas. É tudo sem comprometer a decência !

Supõe-se que crianças tenham inaugurado a transgressão. Quando pequena, lembro-me de rabiscar ilustrações nos livros que não as tivessem e colorir as que encontrava. Eram meus, ora essa, a serpente que arranjasse outra vítima !

Cresci, e o hábito, ao invés de diminuir, aumentou. Agora prefiro "conversar" com os autores, incluindo (que ousadia !) os do Texto Sagrado.

Verdades, conselhos, promessas de Deus e coisas do gênero, em minha Bíblia, grifo de amarelo. Deslumbramento, sutilezas, metáforas? Grifo rosa. E lápis por todo o lado, num bate-papo animado que data de décadas.

Aconselho o leitor a fazer, do lápis, um parceiro constante. Ao retornar a esses amigos maduros, os livros lidos e relidos, você se deleitará com reflexões e discussões que tanto o encantaram, quando da primeira leitura.

Há um, em particular, com o qual mantive colóquio intensíssimo. No final, confesso, o processo virou uma espécie de jogo literário. Mas quem resiste a uma obra que se chama "O LIVRO DAS PERGUNTAS?" Amarro minha sutil tese a uma linha de pipa ao arriscar dizer que Pablo Neruda, seu autor, pretendia estimular o leitor a responder a tais perguntas.

Independente da tese ser verdadeira ou não, o jogo resultou em divertida e poética "troca", por assim dizer. Torcendo para que o leitor se arriscasse por seara semelhante, pinço, do livro mencionado, parte do bate-bola. As perguntas são Neruda; as respostas, escrevi a lápis:

"Por que não ataca, o tubarão, / as impávidas sereias?" Porque ele, no fundo, é um tímido !

"O que diz a velha cinza, / quando caminha junto ao fogo?" Eu sou você amanhã !

"Que ocorre com as andorinhas / que chegam tarde ao colégio?" Não ficam sem castigo.

"Como repartem o sol, / na laranjeira, as laranjas?" Em gomos, a sorrir.

"Quem gritou de alegria, / ao nascer a cor azul?" O menino Deus, pois é a cor de seu lar.

"Quem nunca viu aloés?" Eu, mas vi leoas.

Finalizo com frase do imprescindível autor Daniel Pennac: "A virtude paradoxal da leitura é de nos abstrair do mundo para nele encontrar algum sentido". Se o livro é a asa que nos eleva do mundo para melhor observá-lo e, lá em cima, juntar os complicadíssimos caquinhos que, no chão, não fazem sentido, eu me pergunto: por que ainda não correu até o livro mais próximo para devorá-lo?


Autora: FLÁVIA SAVARY 
(A autora é escritora, ilustradora e dramaturga. Pela Editora Cidade Nova publicou "A roupa nova do arco-da-velha", Prêmio Jabuti 2015)

Obs: Crônica extraída da  Revista Cidade Nova - Fraternidade em Revista,  exemplar 559, ano LVIII, nº 03, março 2016, página 44, site da revista: www.cidade nova.org.br